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Junho
01
2020

Professor da UFGD defende a inclusão das memórias afetivas e pessoais no registro histórico da pandemia

  Atualizada: 01/06/2020
Conforme o professor Leandro Seawright, cada pessoa vai formular suas memórias e narrativas sobre estes tempos, mas é importante que nenhum ponto de vista seja excluído da História

“Quando tiver netos, vou contar a eles que sobrevivi à pandemia global de covid-19”, diz um quadrinho de humor que circula na internet há semanas. A brincadeira demonstra aquilo que todos já sabemos: estamos vivendo um momento que marca a história da humanidade.

Leandro Seawright, doutor em História Social e professor da UFGD, afirma que momentos considerados atípicos na história – como revoluções, guerras e pandemias – estimulam a reorganização da memória coletiva a partir de vivências e narrativas pessoais. Leandro explica que todos nós, humanos, temos uma memória neurológica que é a capacidade fisiológica de lembrar de fatos que nos ocorreram ou histórias que nos contaram. Além disso, temos uma memória social, que é bifurcada entre memória coletiva e individual.

Na memória coletiva ficam marcados os momentos decisivos da história de uma cidade, de um grupo social, ou de um país. A pandemia global de covid-19 ficará registrada na memória coletiva da humanidade. Conforme ressalta Leandro: “Nós temos uma memória coletiva que certamente sente o luto de maneira conjunta – afinal, só no Brasil já são mais de 28 mil mortos vítimas fatais da covid-19”.

Já a memória individual se refere à capacidade de cada pessoa elaborar suas lembranças de como passou por este momento de dificuldade coletiva. “Nós temos a tradução individual desse luto, a maneira como nós pessoalmente elaboramos uma tragédia individual. A memória do doente faz com que ele reorganize todo um campo afetivo. Devemos estar conscientes que a nossa identidade passa por uma reelaboração a partir das lembranças que trazemos”, diz ele.

MEMÓRIAS AFETIVAS E MEMÓRIA COLETIVA

Cada pessoa que superar essa pandemia trará lembranças desse momento, junto ao seu seio familiar e seu ambiente social. Ao considerarmos os diferentes contextos de cada região do Brasil, ou até mesmo as diferenças entre famílias que vivem na mesma cidade, fica claro que haverá memórias diferentes sobre esse momento histórico.

“A classe média e aqueles que tem condições estão dentro de casa, vivenciando o isolamento. Mas, chamo a atenção para a dimensão social das periferias, onde se constroem outras memórias, que são sobre a luta diária muito mais intensa pela sobrevivência, em face das péssimas condições de saneamento básico, de condições de vida. No caso de Dourados nós temos ainda a memória indígena, e ressalto que para essa população os desastres epidemiológicos remontam à época da colonização e, mais recentemente, à colonialidade que é a capacidade dessa sociedade presente tem de envolvê-los de maneira a dominá-los, a excluí-los do processo de construção de cidadania”, avalia Leandro.

Para os historiadores, ouvir a história das pessoas de grupos sociais mais vulneráveis é importante para compreender e registrar as diferentes realidades vividas em um mesmo momento histórico, sem excluir ninguém. “Essa memória indígena em Dourados é muito importante para os estudos de memória, por exemplo”, relata o professor.

Em um momento em que a sociedade brasileira debate o que - em linhas gerais - vem sendo chamado de “disputa de narrativas”, registrar a diversidade de narrativas históricas é uma busca por incluir a perspectiva de povos cuja a história é apagada dos registros oficiais. O registro da história oral tem valor não somente acadêmico, mas é uma maneira de humanizar as relações sociais a partir de um auto-conhecimento e do reconhecimento “do outro”.

LEMBRANÇAS GERAM NOVOS SIGNIFICADOS

Narrar sua história de vida e ouvir outras histórias de vida, conforme assinala o professor, tem também poder de curar dores e ressignificar momentos difíceis como o que estamos vivenciando. “A memória individual tem uma dimensão oral que permite a narrativa com efeito terapêutico. Além disso temos a literatura, os álbuns de família, a memória da infância e outras dimensões que nos permitem revisitar a nossa própria história em um salto para o passado, que é um salto para dentro de nós. Por isso eu reforço que a importância da memória individual é que ela nos permite estudar não só a história da doença, mas a história do doente; não somente a história do luto, mas a história do enlutado”, explica Leandro.

O professor ainda entende que os pesquisadores da área da História Oral contribuem para registrar este momento, com o cuidado de dar visibilidade para muito mais do que estatísticas ou dados oficiais, mas especialmente trazer a atenção para as trajetórias das pessoas que passaram pela covid-19: “A história oral possibilita escutar pessoas doentes com a covid-19. Alguns podem pensar em fazer uma história oral da covid-19, mas tenho dito que ‘vírus não fala’, e, como não fala, o que fazemos é uma história oral de pessoas que, contaminadas ou afetadas pela perda de alguém, recorrem às suas memórias como quem busca por sobrevivência. Pessoas falam e contam seus dramas e o que têm feito para sobreviverem. Daí a necessidade de pesquisa empírica”, afirma.